quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Experimente


A Bíblia no original é, humanamente falando, formada a partir da mente hebraica. Porém, em algum ponto da história eclesiástica, abandonamos o projeto inicial dentro do contexto hebraico, comum aos dias de Jesus, e substituímos por um não-hebraico, mais precisamente, greco-romano. E como resultado dessa transformação, o que foi construído a partir de então, tornou-se uma caricatura do que se pretendia.
Basicamente, o contraste entre essas duas mentalidades resume-se em: Fazer vs Saber. A hebraica está preocupada com a prática do comportamento correto. A helenística, se interessa mais na informação, e o saber tem relevância sobre o fazer. Então existe uma divergência, existe uma valorização da virtude moral, ou da virtude teórica.
Isso talvez ajude a explicar por que para algumas igrejas o foco esteja nas questões ortodoxas doutrinárias. Todos cremos nos mesmos princípios básicos, mas em pontos mínimos, divergimos e nos separamos. Demonstrando um triunfo da “doutrina correta” frente à comunhão.
Foram justamente cristãos gentios influenciados pela cultura greco-romana que sistematizaram a doutrina cristã e acabaram mudando essa doutrina de forma radical. Os hebreus nos dias de Jesus não possuíam uma teologia sistematizada a partir da qual toda doutrina tinha de ser filtrada e esquematizada.
Para muitos de nós, a mente hebraica é estranha e impossível de compreender. Por isso, começamos tentando adentrar no contexto, e não conseguimos, voltamos para o modo helenístico. Note que a maior parte do Velho Testamento foi escrita em hebraico, e o Novo Testamento em grego, mesmo assim todos os livros foram escritos por judeus que pensavam de forma hebraica, ainda que estivessem usando o grego.
Por exemplo, queremos saber quando Deus vai agir. Isso é uma visão helenística, vemos o tempo como começo, meio e fim, uma trajetória linear.  Queremos saber a ordem sequencial de quando Deus vai agir, criamos um cronograma preordenado dos acontecimentos e queremos eliminar eventos do nosso calendário a medida em que eles vão acontecendo. Essa mentalidade é alienígena para a mente hebraica, para ela, não interessa a sequência exata dos acontecimentos, o que importa é que Deus vai fazer. Isso torna a leitura do tempo cíclica, e não linear.
Na teologia ocidental também se abandona a interpretação literal em favor de uma alegórica. Isso é tipicamente greco-romano.
O grego diz que a vida é analisada em categorias precisas, o judeu diz que toda vida se mistura em todos os aspectos. O grego diz que há uma divisão clara entre natural e sobrenatural, o judeu diz que o sobrenatural afeta toda a vida. O grego diz que cada evento é um novo acontecimento e o tempo é segmentado, o judeu diz que o tempo é cíclico e eventos reaparecem constantemente. O grego diz que bens materiais medem a realização pessoal, o judeu diz que os bens materiais são bênçãos de Deus e o prazer está em compartilhar. O grego diz que a fé é cega, o judeu diz que a fé é baseada em conhecimento e experiência pessoal. O grego diz que o tempo tem pontos como em uma linha reta, o judeu diz que o tempo é analisado a partir do conteúdo (No dia em que o Senhor fez...).
Em nossa busca incessante de transformar a Bíblia em um livro de perguntas e respostas sobre Deus, acabamos distorcendo o seu conteúdo. Para a mente judaica a bondade de Deus não precisa ser analisada ou estudada, mas experimentada. Não há muita importância em falar de Sua bondade, mas a sua ênfase é posta em sua compaixão para com o homem individualmente. Em outras palavras, Deus não é conhecido no abstrato, mas em situações específicas em que Ele se afirma como Deus na vida de cada um pessoalmente.
O grego aprende a fim de compreender, o judeu aprende a fim de reverenciar e experimentar, e o homem moderno... bem, o homem moderno aprende a fim de usar. Queremos uma religião da utilidade. Queremos uma filosofia de vida. Técnicas que podem ser aplicadas conforme cada situação que passamos, “técnicas orientadas”.
O que me leva a crer que essa geração quer sim um Deus, mas quer um deus mudo, um deus que se possa colocar no fundo da gaveta, um deus que não causa transformações profundas no ser. No máximo, um deus de domingos. Essa geração ainda não percebeu que o deus que ela pensa que adora é ela mesma.
Nos dias em que o movimento de Jesus era conhecido como “seita dos nazarenos”, ser cristão estava diretamente ligado com a sua proximidade com Deus e com o próximo. Nos séculos posteriores, entretanto, demos menos importância aos relacionamentos e politizamos a fé. O antissemitismo, em seguida, destruiu a personalidade original da igreja em vários aspectos. Isso explica por que é tão difícil para nós entender a Bíblia como um todo, como uma harmonia.
Precisamos voltar às raízes da fé cristã. Precisamos de um Deus presente, de um Deus harmônico.

“Existe um caminho que vai dos olhos ao coração sem passar pelo intelecto. ” (G. K. Chesterton)

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