segunda-feira, 26 de outubro de 2015

Altitude


Quando você lê a Bíblia, altitude é importante. Você pode ler um versículo e estudar as palavras individuais. Você pode refletir sobre uma frase. Você pode olhar para a lógica, fluxo e significado de vários versículos em uma fileira. Você pode estudar um parágrafo ou capítulo.
Ou você pode voar mais alto, olhando para todo o livro.
É isso que quero dizer com altitude: Você pode ler a bíblia de diferentes alturas. E quando você voa mais alto, você vê coisas que perderia se estivesse em voos mais baixos.
Como no livro de Atos. Como ele começa? Com Jesus dizendo aos seus discípulos que eles serão capacitados pelo Espírito para levar sua mensagem aos confins da Terra, começando com Jerusalém e depois a Judéia e Samaria. Jesus, judeu, dizendo aos seus seguidores, em sua maioria judeus, que eles vão deixar a sua pátria judaica e acabarão nos cantos mais distantes da Terra.
Pelo capítulo 8, o que vemos? Que eles ainda estão em Jerusalém! Interessante, não é? Ele diz para eles deixarem a bolha e irem a lugares mais remotos, mas 8 capítulos depois, eles ainda estão lá no mundo que sempre soube. Nós, então, lemos que uma grande perseguição irrompeu contra eles e eles foram espalhados por, espere aí, Judéia e Samaria. Fora da zona de conforto.
Agora, avancemos rapidamente para o fim do livro de Atos. Qual é a cena? O apóstolo Paulo está em Roma. Roma, para um judeu do primeiro século, era literalmente os confins da Terra.
Isso é interessante porque Jesus, antes de morrer, tinha levado seus discípulos à Cesaréia de Filipe, uma cidade dominada pelo paganismo. Os gregos criam que alguns deuses viviam debaixo da Terra, o Hades, reino dos mortos. Literalmente, “Portas do Hades”.
Eles adoravam Pan ali. Dançarinos “ninfos” dançavam danças sexualmente sugestivas para uma multidão frenética. Cabras eram trazidas para fora, e a multidão se envolvia em uma orgia (com humanos e cabras!).
Os judeus diziam que o Messias destruiria as portas do Hades, por causa do seu mal.
Os discípulos se espantaram por Jesus os ter levado para aquele lugar. E então, ele pergunta: “Quem sou eu?” E Pedro responde “Tu és o Messias, filho do Deus vivo!”
“Vivo”, em oposição aos ídolos mortos que o cercavam.
Jesus diz a Pedro que Deus o tinha revelado isso. E então afirma “Sobre essa rocha edificarei a minha igreja” OI???? Esse lugar pagão e pecaminoso??
Jesus estava dizendo que a sua igreja seria construída sobre as ruínas do paganismo, e as portas do Hades jamais prevaleceriam contra ela.
Ele estava construindo uma paixão em seus discípulos. E essa paixão deveria vencer o medo de enfrentar uma cultura hostil e mundana.
Há, então, um arco, uma trajetória, um movimento para o livro de Atos que você só vê se você voar ao mais alto, lendo o livro como uma narrativa contínua. O que você vê é que essa mensagem não pode ser contida por qualquer grupo ou etnia ou localização geográfica. A mensagem do reino de Deus simplesmente não pode ser domada.
Ela se move de Jerusalém a Roma, do conhecido para o desconhecido, do local ao global, de um grupo de pessoas para todas as pessoas.
Ela começa com um grupo específico de pessoas de uma tribo específica, mas se espalha até que esteja no centro do mundo trazendo vida para todos os tipos de pessoas de todas as origens. É uma realidade em expansão.
Você tem um cânon dentro de um cânon? Você acredita que Deus fala através de todo o texto, ou você prefere ficar com os textos aprovados que são evangelicamente domesticados?
Que não tenhamos nenhum desejo de domar o texto.
Queremos deixá-lo fora de sua gaiola e queremos vê-lo em torno de nossas vidas, devorando os nossos ossos. Não queremos ser cientistas metódicos que estudam sobre o assunto e aplicam as devidas normas, métodos e procedimentos para que possam alcançar resultados favoráveis. O impulso moderno é sempre reduzir a mensagem a princípios simplórios. A insistir continuamente que, com bastante trabalho, tudo vai fazer sentido e bola para frente, tudo se alinha depois.
Mas a vida nem sempre se alinha.
A Bíblia não é um livro limpo. Não é um guia para o comportamento adequado. Ela nem sequer parece se importar em ser "relevante" ou não.
A Bíblia é um manifesto revolucionário que poderia te matar em muitas partes do mundo. Ele está vivendo, ele está respirando. E quer que nos rendamos a ele incondicionalmente para que ele possa nos transformar.
Existe sempre algo novo para se conhecer. E uma das maiores doenças que têm infectado a igreja na era moderna é o desejo de reduzir.
O Espírito de Deus é misturado e imprevisível. E isso não é uma heresia. O Espírito se move de maneiras demasiadamente selvagens e desenfreadas e nós temos que correr para dançar no ritmo.
O lugar mais perigoso para se estar no universo é o centro da vontade de Deus.
E é onde queremos estar.
Eu espero que nós nunca pensemos que acertamos.
Eu espero que nós nunca acreditemos que chegamos.
Espero que seja sempre perigoso.
Sempre caótico.
Sempre às avessas.
Nunca resolvido.
Bagunçado.
Nós amamos as Escrituras e queremos que elas varram os nossos pés para fora.
Leia mais

quinta-feira, 15 de outubro de 2015

Experimente


A Bíblia no original é, humanamente falando, formada a partir da mente hebraica. Porém, em algum ponto da história eclesiástica, abandonamos o projeto inicial dentro do contexto hebraico, comum aos dias de Jesus, e substituímos por um não-hebraico, mais precisamente, greco-romano. E como resultado dessa transformação, o que foi construído a partir de então, tornou-se uma caricatura do que se pretendia.
Basicamente, o contraste entre essas duas mentalidades resume-se em: Fazer vs Saber. A hebraica está preocupada com a prática do comportamento correto. A helenística, se interessa mais na informação, e o saber tem relevância sobre o fazer. Então existe uma divergência, existe uma valorização da virtude moral, ou da virtude teórica.
Isso talvez ajude a explicar por que para algumas igrejas o foco esteja nas questões ortodoxas doutrinárias. Todos cremos nos mesmos princípios básicos, mas em pontos mínimos, divergimos e nos separamos. Demonstrando um triunfo da “doutrina correta” frente à comunhão.
Foram justamente cristãos gentios influenciados pela cultura greco-romana que sistematizaram a doutrina cristã e acabaram mudando essa doutrina de forma radical. Os hebreus nos dias de Jesus não possuíam uma teologia sistematizada a partir da qual toda doutrina tinha de ser filtrada e esquematizada.
Para muitos de nós, a mente hebraica é estranha e impossível de compreender. Por isso, começamos tentando adentrar no contexto, e não conseguimos, voltamos para o modo helenístico. Note que a maior parte do Velho Testamento foi escrita em hebraico, e o Novo Testamento em grego, mesmo assim todos os livros foram escritos por judeus que pensavam de forma hebraica, ainda que estivessem usando o grego.
Por exemplo, queremos saber quando Deus vai agir. Isso é uma visão helenística, vemos o tempo como começo, meio e fim, uma trajetória linear.  Queremos saber a ordem sequencial de quando Deus vai agir, criamos um cronograma preordenado dos acontecimentos e queremos eliminar eventos do nosso calendário a medida em que eles vão acontecendo. Essa mentalidade é alienígena para a mente hebraica, para ela, não interessa a sequência exata dos acontecimentos, o que importa é que Deus vai fazer. Isso torna a leitura do tempo cíclica, e não linear.
Na teologia ocidental também se abandona a interpretação literal em favor de uma alegórica. Isso é tipicamente greco-romano.
O grego diz que a vida é analisada em categorias precisas, o judeu diz que toda vida se mistura em todos os aspectos. O grego diz que há uma divisão clara entre natural e sobrenatural, o judeu diz que o sobrenatural afeta toda a vida. O grego diz que cada evento é um novo acontecimento e o tempo é segmentado, o judeu diz que o tempo é cíclico e eventos reaparecem constantemente. O grego diz que bens materiais medem a realização pessoal, o judeu diz que os bens materiais são bênçãos de Deus e o prazer está em compartilhar. O grego diz que a fé é cega, o judeu diz que a fé é baseada em conhecimento e experiência pessoal. O grego diz que o tempo tem pontos como em uma linha reta, o judeu diz que o tempo é analisado a partir do conteúdo (No dia em que o Senhor fez...).
Em nossa busca incessante de transformar a Bíblia em um livro de perguntas e respostas sobre Deus, acabamos distorcendo o seu conteúdo. Para a mente judaica a bondade de Deus não precisa ser analisada ou estudada, mas experimentada. Não há muita importância em falar de Sua bondade, mas a sua ênfase é posta em sua compaixão para com o homem individualmente. Em outras palavras, Deus não é conhecido no abstrato, mas em situações específicas em que Ele se afirma como Deus na vida de cada um pessoalmente.
O grego aprende a fim de compreender, o judeu aprende a fim de reverenciar e experimentar, e o homem moderno... bem, o homem moderno aprende a fim de usar. Queremos uma religião da utilidade. Queremos uma filosofia de vida. Técnicas que podem ser aplicadas conforme cada situação que passamos, “técnicas orientadas”.
O que me leva a crer que essa geração quer sim um Deus, mas quer um deus mudo, um deus que se possa colocar no fundo da gaveta, um deus que não causa transformações profundas no ser. No máximo, um deus de domingos. Essa geração ainda não percebeu que o deus que ela pensa que adora é ela mesma.
Nos dias em que o movimento de Jesus era conhecido como “seita dos nazarenos”, ser cristão estava diretamente ligado com a sua proximidade com Deus e com o próximo. Nos séculos posteriores, entretanto, demos menos importância aos relacionamentos e politizamos a fé. O antissemitismo, em seguida, destruiu a personalidade original da igreja em vários aspectos. Isso explica por que é tão difícil para nós entender a Bíblia como um todo, como uma harmonia.
Precisamos voltar às raízes da fé cristã. Precisamos de um Deus presente, de um Deus harmônico.

“Existe um caminho que vai dos olhos ao coração sem passar pelo intelecto. ” (G. K. Chesterton)
Leia mais

segunda-feira, 5 de outubro de 2015

Além do problema do mal


No famoso Salmo 91, existe um trecho que diz “Ainda que eu passe pelo vale da sombra da morte, não temerei mal algum”.
Bom, o Salmo não quer fingir que o mal e a morte não existem. Coisas terríveis acontecem também. Tanto com pessoas boas quanto com pessoas más. Mesmo em caminhos da justiça, chegaremos a vales da sombra da morte. Paulo chama isso de dia mau.  O salmista não tenta explicar o mal. Não tenta minimizar o mal. Ele simplesmente diz que não vai teme-lo. Pois de todo poder que o mal tem, ele não tem o poder de deixa-lo com medo.
Certo. Mas isso ainda constitui um problema, aparentemente. Vamos esquematizar.
- Deus é todo-poderoso.
- Deus é bom.
- Coisas terríveis acontecem.
Você consegue conciliar as duas primeiras proposições, mas não a terceira. Talvez esse seja o maior e único problema para a fé.
Você, se manjador de apologética, sabe qual vai ser minha linha de pensamento a partir daqui. Isso aí. Mas não feche a janela ainda. :P
Acontece que como a Bíblia diz, os céus são do Senhor, e a Terra, Ele deu aos filhos dos homens. Por que Deus quer um relacionamento de amor com o homem e não existe amor sem escolha. Então, Deus não criou o mal mas criou a possibilidade do mal. E isso dá equilíbrio à natureza e torna a liberdade de escolha possível. É isso mesmo, Deus está dizendo que não importa o quão feio seja o mal, o mal disfarçado de bem é bem pior. Pois embora pareça que Deus estaria sendo bom tirando a liberdade de escolha e fingindo que está tudo bem e tudo é lindo, Ele sabe que isso é um mal disfarçado de bem. E isso tornaria Deus o causador do mal. No final das contas, a sua tentativa aparentemente lógica de resolver a situação fazendo Deus tirar a liberdade, O tornaria mal de qualquer forma.
Robôs fazendo tudo ao seu bel prazer. Você adoraria se quisesse um mordomo. Mas morreria se almejasse um relacionamento. Bom, Deus definitivamente não quer um mordomo. E você, definitivamente não gostaria de ser.
Se afinal de contas, a bondade de Deus se revela em trazer todos para Si no fim desta vida, independentemente de suas próprias escolhas e vontades, Deus é um rei tirano. E eu não quero passar a eternidade com esse tipo de Deus.
Mas veja, a Bíblia não se ocupa tanto com essa questão. Embora o mal esteja presente em toda a história da humanidade, e consequentemente em histórias da bíblia, Deus não se preocupa muito em colocar os pingos nos I’s. Ele deixa muitas vezes que você subentenda a partir do Seu caráter. Tipo: Não é tão óbvio que eu sou bom????
Mas veja, vamos para uma situação prática.
Quando uma criança é estuprada, os pais não vão estar nem aí para a explicação de que Deus nos ama e por isso devemos ser livres, o que torna outra pessoa livre para estuprar a sua filha.
Isso é verdade? Sim.
Mas não é suficiente no momento de dor.
O relativismo resolve o problema do mal dizendo que ele não existe, e que é uma ilusão da mente mortal. O budismo resolve em termos de reencarnação e em uma lei inexorável de causa e efeito em que a criança estuprada está apenas colhendo as consequências de más ações que cometeu em outra vida.
O cristianismo por outro lado, não parece se preocupar demais em resolver esse problema teoricamente. Ele simplesmente aponta para o escândalo da cruz seguido da esplêndida ressurreição e diz que, em termos práticos, não há mal tão obscuro e obsceno que Deus não possa transformar em bem.
Bom, isso me lembra o primeiro capítulo de Efésios.
“Ele nos revelou o mistério da sua vontade, de acordo com o bom propósito que ele estabeleceu em Cristo, isto é, de fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos. ” (Ef 1:9-10)
Peraí. O que? Todas as coisas? Fazer convergir todas as coisas?
Olha, “todas as coisas” nessa passagem no grego é a palavra pas, e literalmente significa... todas as coisas. Para você que já estava relativizando. 
Agora, convergir. Veja, outras versões podem dizer resumir, recolher, recontar, recapitular, trazer à tona.
A palavra é anakephalaiossathai. Vamos fazer uma pausa para apreciar o tamanho dessa palavra. Se você usa esta palavra, você não está brincando.
Ana significa novamente. Kephale significa cabeça. Anakephalaiossathai significa trazer todas as coisas a uma só cabeça.
É, Deus vai recontar a história de tudo em Cristo. Reconciliar, renovar, restaurar, pôr tudo sobre uma única cabeça.
Sua dor? Todas as coisas.
Pobreza? Todas as coisas.
Abuso? Todas as coisas.
Racismo? Todas as coisas.
Relacionamentos frustrados? Todas as coisas.
Coisas realmente más? Todas as coisas.
De acordo com Paulo, é isso que traz prazer a Deus. Isso é o que Deus anseia fazer no mundo. Isso é o que Deus está fazendo no mundo agora. Renovando as coisas. E quando tudo estiver pronto, olharemos para toda essa história, com pontos tão realmente tristes e maus, com todas essas fraturas, com todas essas lacunas, com todos esses furos no script, com tudo que não deveria ser mas é, sabendo que Deus não foi o causador de nada disso. Mas que Ele está não apenas apto, mas louco de desejo de fazer todas, todas, todas, todas as coisas novas e lindas novamente em Cristo.  
Leia mais

© Harmonia Poliforme, AllRightsReserved.

Designed by ScreenWritersArena