terça-feira, 4 de agosto de 2015

Lembranças do meu verdadeiro lar


“Minha percepção de que a felicidade pendia do fio incerto de uma condição, no fim das contas, significava alguma coisa: significava toda a doutrina da Queda. Mesmo aqueles sombrios e informes monstros de noções que não fui capaz de descrever, muito menos de sustentar, ocuparam suavemente seus espaços como colossais cariátides do credo. A fantasia de que o cosmos não era vasto e vazio, mas pequeno e aconchegante, tinha agora um significado realizado, pois toda obra de arte deve ser pequena aos olhos do artista: para Deus as estrelas talvez fossem apenas minúsculas e caras, como diamantes. E o meu persistente instinto de que, de algum modo, o bem não era simplesmente um instrumento a ser usado, mas uma relíquia a ser preservada, como os bens do navio de Crusoé — até isso fora o tímido sussurro de algo originariamente sábio, pois, segundo o cristianismo, éramos de fato os sobreviventes de um naufrágio, a tripulação de um navio dourado que fora a pique antes do começo do mundo”. (G. K. Chesterton, Ortodoxia, p. 132)

Uma vez eu li um livro sobre uma criança que foi sequestrada. O menino foi sequestrado ainda muito novo, e fizeram lavagem cerebral nele. Deram-lhe um novo nome, ele chamava os sequestradores de mamãe e papai. Eles criaram uma vida falsa inteira para o garoto. Do lado de fora, era tão normal - escola, beisebol, amigos - e eles estavam satisfeitos porque ele tinha esquecido sua antiga vida e que esta era agora a sua nova vida.
Mas ainda havia algo ali, enterrado no fundo de seu coração, ele sabia que algo não estava certo. Ele tinha sonhos frequentemente de sua antiga vida, sonhos de sua mãe e seu pai, do seu antigo quarto. E mesmo ele estando feliz e seus sequestradores sendo tão bons para com ele, ele não se surpreendeu ao finalmente descobrir que havia sido sequestrado e que toda a sua vida era uma mentira. Quando ele finalmente foi restaurado ao seu verdadeiro lar, todos estavam preocupados sobre como ele reagiria, porque, afinal, todos eram estranhos para ele. Mas ele viu sua mãe de verdade, seu verdadeiro pai, sua casa, e ele chorou e disse simplesmente que sempre soube, ele sempre soube, a verdade estava lá no seu coração o tempo todo.
Às vezes me sinto assim em relação a Deus. Sinto que talvez sejamos todos os exilados. 
Você já percebeu que a forma como a história começa a ser contada define que tipo de história você está contando? O nosso problema é que começamos a contar a história da humanidade a partir da queda, e não da criação. E a queda não é o fator primordial. A bondade da criação é.
Nós pensamos que estamos em nossa vida regular, nossa vida real. Mas ainda existe essa impressão, essa sensação, essa memória de algo melhor, algo mais. Um lugar perfeito ainda está preso em nossos corações. E mesmo quando tudo está bem, ou quando conseguimos realizar todos os nossos sonhos, ou quando já estamos na plenitude do que o mundo tem como sucesso, com toda fama e dinheiro ou com uma linda casa, um cônjuge perfeito, cinco crianças e um cão, nós ainda sabemos, no fundo de nossos corações, estamos exilados e alguma coisa, algo não está certo aqui.
Não é o suficiente. Todas as coisas, todas as experiências, todas as emoções do mundo se tornam como uma cortina de fumaça da bondade.  É uma aproximação de algo real para convencer-nos de que estamos bem, que é normal, mas estamos andando por aí e sabemos todo o tempo que não se encaixa o bastante, sabemos que algo está fora do lugar, sabemos que não estamos onde pertencemos. A memória do reino de Deus está lá. 
Está lá no fundo da alma. Como o salmista cantou, somos como aqueles que sonham com o lar. Ele está submerso em algum lugar no nosso cérebro ou alma, mas nós sabemos, nós sabemos, a verdade está em nosso coração o tempo todo.
Vemos vislumbres dela, temos uma lembrança, uma suspeita, um palpite ou uma memória que não conseguimos entender. E isso se move como fumaça ou uma tempestade de flashes: nós amamos, aprendemos, cantamos, vemos as estrelas aparecendo depois do pôr do sol, nós nos conectamos, trabalhamos, cuidamos, rimos, choramos, dançamos (eu, não muito), ensinamos, nos importamos, e tudo isso consegue parecer apenas uma sombra, e não a substância, não importa com qual intensidade façamos.
Nós temos estes momentos de transcendência, quando a cortina entre o céu e a terra começa a vibrar. De repente, somos lembrados. Nossa pele é feita de pó e isso parece mais real às vezes, podemos sentir o cheiro perfumado do jardim, o frescor da noite, e sabemos em algum lugar dentro de nós que deveríamos estar andando com Deus na viração do dia, ainda sem nenhuma vergonha.
Não é isso que acontece quando encontramos Jesus? Não é que nós simplesmente o encontramos e agora acreditamos nele e concordamos mentalmente com todas as verdades inegociáveis que ele afirmou e que regerão a nossa vida a partir de então. É que nós o reconhecemos de algum lugar. É que cada palavra dele me faz decifrar um pouco mais do que é o meu verdadeiro lar. Sem ele, essas memórias me perturbam. Eu não posso passar um dia sequer longe dele, porque é ele que satisfaz o meu maior anseio, ele me faz entender que as lembranças dentro de mim não são invenção da minha cabeça, elas são reais e eu quero voltar para casa. Eu não o conheço, eu o reconheço.
Por essa razão, Jesus não veio apenas para a justificação do injusto, mas para provar que a humanidade foi criada para ser justa. E a sua ressurreição reafirma a bondade da criação. Jesus me fez entender que não é um sonho, que é real. O exílio em que me encontro não é o meu lar. E quando cruzarmos o limiar da fé, entraremos em uma consciência de que o Reino de Deus já chegou.
Nos damos conta de que sempre soubemos. Eu sempre soube, a verdade estava lá no meu coração o tempo todo. Eu não podia articular direito, se tentasse dizer isso em voz alta soaria tolo. Então, a saudade inexplicável reside em mim até que tudo esteja cumprido. O Reino de Deus. Amor, esperança, alegria, paz e bondade. A imagem de Deus em nós clama por Ele. O nosso plano original não nos deixa ficar em paz com as nossas falhas. É nessa direção que deveríamos estar caminhando todos os dias, a restauração do nosso lindo lar, a redenção de todos nós, o nosso resgate dessa vida falsa que pensamos que é real. A restauração do shalom (florescimento universal, prazer, plenitude e paz). Nós fomos criados para essa verdadeira vida. E se a reconhecermos, estaremos em casa em breve.


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