“Minha
percepção de que a felicidade pendia do fio incerto de uma condição, no fim das
contas, significava alguma coisa: significava toda a doutrina da Queda. Mesmo
aqueles sombrios e informes monstros de noções que não fui capaz de descrever,
muito menos de sustentar, ocuparam suavemente seus espaços como colossais
cariátides do credo. A fantasia de que o cosmos não era vasto e vazio, mas
pequeno e aconchegante, tinha agora um significado realizado, pois toda obra de
arte deve ser pequena aos olhos do artista: para Deus as estrelas talvez fossem
apenas minúsculas e caras, como diamantes. E o meu persistente instinto de que,
de algum modo, o bem não era simplesmente um instrumento a ser usado, mas uma
relíquia a ser preservada, como os bens do navio de Crusoé — até isso fora o
tímido sussurro de algo originariamente sábio, pois, segundo o cristianismo,
éramos de fato os sobreviventes de um naufrágio, a tripulação de um navio
dourado que fora a pique antes do começo do mundo”. (G. K. Chesterton,
Ortodoxia, p. 132)
Uma vez eu li um livro sobre uma criança que foi sequestrada. O
menino foi sequestrado ainda muito novo, e fizeram lavagem cerebral nele. Deram-lhe
um novo nome, ele chamava os sequestradores de mamãe e papai. Eles criaram uma
vida falsa inteira para o garoto. Do lado de fora, era tão normal -
escola, beisebol, amigos - e eles estavam satisfeitos porque ele tinha esquecido
sua antiga vida e que esta era agora a sua nova vida.
Mas ainda havia algo ali, enterrado no fundo de seu coração, ele
sabia que algo não estava certo. Ele tinha sonhos frequentemente de sua
antiga vida, sonhos de sua mãe e seu pai, do seu antigo quarto. E mesmo
ele estando feliz e seus sequestradores sendo tão bons para com ele, ele não se
surpreendeu ao finalmente descobrir que havia sido sequestrado e que toda a sua
vida era uma mentira. Quando ele finalmente foi restaurado ao seu
verdadeiro lar, todos estavam preocupados sobre como ele reagiria, porque,
afinal, todos eram estranhos para ele. Mas ele viu sua mãe de verdade, seu
verdadeiro pai, sua casa, e ele chorou e disse simplesmente que sempre soube,
ele sempre soube, a verdade estava lá no seu coração o tempo todo.
Às vezes me sinto assim em relação a Deus. Sinto que talvez sejamos todos os exilados.
Você já percebeu que a forma como a
história começa a ser contada define que tipo de história você está contando? O
nosso problema é que começamos a contar a história da humanidade a partir da
queda, e não da criação. E a queda não é o fator primordial. A bondade da
criação é.
Nós pensamos que
estamos em nossa vida regular, nossa vida real. Mas ainda existe essa impressão,
essa sensação, essa memória de algo melhor, algo mais. Um lugar perfeito ainda
está preso em nossos corações. E mesmo quando tudo está bem, ou quando conseguimos realizar todos
os nossos sonhos, ou quando já estamos na plenitude do que o mundo tem como
sucesso, com toda fama e dinheiro ou com uma linda casa, um cônjuge perfeito, cinco
crianças e um cão, nós ainda sabemos, no fundo de nossos corações, estamos
exilados e alguma coisa, algo não está certo aqui.
Não é o suficiente. Todas as coisas, todas as experiências, todas as emoções do mundo se tornam como uma
cortina de fumaça da bondade. É uma aproximação de algo real
para convencer-nos de que estamos bem, que é normal, mas estamos andando por aí
e sabemos todo o tempo que não se encaixa o bastante, sabemos que algo está
fora do lugar, sabemos que não estamos onde pertencemos. A memória do reino de Deus está
lá.
Está lá no fundo da alma. Como o salmista cantou, somos como
aqueles que sonham com o lar. Ele está submerso em algum lugar no nosso
cérebro ou alma, mas nós sabemos, nós
sabemos, a verdade está em nosso coração o tempo todo.
Vemos vislumbres dela, temos uma lembrança, uma suspeita, um
palpite ou uma memória que não conseguimos entender. E isso se move como fumaça ou uma
tempestade de flashes: nós amamos, aprendemos, cantamos, vemos as estrelas aparecendo
depois do pôr do sol, nós nos conectamos, trabalhamos, cuidamos, rimos,
choramos, dançamos (eu, não muito), ensinamos, nos importamos, e tudo
isso consegue parecer apenas uma sombra, e não a substância, não importa com
qual intensidade façamos.
Nós temos estes momentos de
transcendência, quando a cortina entre o céu e a terra começa a vibrar. De
repente, somos lembrados. Nossa pele é feita de pó e isso parece mais real às vezes, podemos
sentir o cheiro perfumado do jardim, o frescor da noite, e sabemos em algum lugar dentro de nós que deveríamos estar andando com Deus na viração do dia, ainda
sem nenhuma vergonha.
Não é isso que acontece quando encontramos
Jesus? Não é que nós
simplesmente o encontramos e agora acreditamos nele e concordamos mentalmente com
todas as verdades inegociáveis que ele afirmou e que regerão a nossa vida a
partir de então. É que nós o reconhecemos de algum lugar. É que cada palavra
dele me faz decifrar um pouco mais do que é o meu verdadeiro lar. Sem ele,
essas memórias me perturbam. Eu não posso passar um dia sequer longe dele,
porque é ele que satisfaz o meu maior anseio, ele me faz entender que as lembranças
dentro de mim não são invenção da minha cabeça, elas são reais e eu quero
voltar para casa. Eu não o conheço, eu o reconheço.
Por essa razão, Jesus não veio apenas para a justificação do injusto, mas
para provar que a humanidade foi criada para ser justa. E a sua ressurreição
reafirma a bondade da criação. Jesus me fez entender que não é um sonho, que é
real. O exílio em que me encontro não é o meu lar. E quando cruzarmos o
limiar da fé, entraremos em uma consciência de que o Reino de Deus já chegou.
Nos damos conta de que sempre soubemos. Eu sempre soube, a verdade
estava lá no meu coração o tempo todo. Eu não podia articular direito, se
tentasse dizer isso em voz alta soaria tolo. Então, a saudade inexplicável
reside em mim até que tudo esteja cumprido. O Reino de Deus. Amor, esperança,
alegria, paz e bondade. A imagem de Deus em nós clama por Ele. O nosso plano
original não nos deixa ficar em paz com as nossas falhas. É nessa direção que deveríamos estar caminhando todos os dias, a restauração do
nosso lindo lar, a redenção de todos nós, o nosso resgate dessa vida falsa que
pensamos que é real. A restauração do shalom (florescimento universal, prazer,
plenitude e paz). Nós fomos
criados para essa verdadeira vida. E se a reconhecermos, estaremos em casa em breve.
Totalmente verdade. Deus abençoe 😊
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